domingo, 16 de julio de 2017

1968 - GELÉIA GERAL // BRUTALIDADE JARDIM


Capa da  ed., de Tarsila do Amaral (1924)

MEMÓRIAS SENTIMENTAIS DE JOÃO MIRAMAR

Fragmento n° 52

INDIFERENÇA

Montmartre
E os moinhos do frio
As escadas atiram almas ao jazz de pernas nuas

Meus olhos vão buscando lembranças
Como gravatas achadas

Nostalgias brasileiras
São moscas na sopa de meus itinerários
São Paulo de bondes amarelos
E romantismos sob árvores noctâmbulas

Os portos de meu país são bananas negras
Sob palmeiras
Os poetas de meu país são negros
Sob bananeiras
As bananeiras de meu país
São palmas claras
Braços de abraços desterrados que assobiam
E saias engomadas
O ring das riquezas

Brutalidade jardim
Aclimatação

Rue de La Paix
Meus olhos vão buscando gravatas
Como lembranças achadas.




DUNN, Christopher. Brutality Garden - Tropicália and the emergence of a brazilian counterculture. 1st edition. The University of North Carolina Press, Chapel Hill & London, 2001. 256 p.

Cover illustration: Gilberto Gil (photograph by Christopher Dunn)


DUNN, Christopher. Brutality Garden - Tropicália and the emergence of a brazilian countercultureCountry Chapel Hill, United States. University of North Carolina Press; New edition (Oct. 15 2001). 276 p.

Cover illustrations: (front) Hélio Eichbauer's scenography for O rei da vela (courtesy Hélio Eichbauer, (back) Gilberto Gil (photograph by Christopher Dunn)


C O N T E N T S

Acknowledgments     ix
Abbreviations     xiii
Introduction     I

CHAPTER 1
Poetry for Export: Modernity, Nacionality, and
Internationalism in Brazilian Culture     12

CHAPTER 2
Participation, Pop Music, and the Universal Sound     37

CHAPTER 3
The Tropicalist Moment     73

CHAPTER 4
In the Adverse Hour: Tropicália Performed and Proscribed     122

CHAPTER 5
Tropicália, Counterculture, and Afro-Diasporic Connections     160

CHAPTER 6
Traces of Tropicália     188

Notes    215
Bibliography     235
Discography     247
Index     249



Page 48 - Gilberto Gil (top) and Caetano Veloso, 1968 (Paulo Salomão/Abril Imagens)

Page 49 - Tom Zé, 1968. (J. Ferreira da Silva/Abril Imagens)

Page 76 - Still from Glauber Rocha’s film Terra em transe, 1967.

Page 80 - A scene from the second act of Oswald de Andrade’s O rei da vela, produced by Teatro Oficina, 1967 (Fredi Kleeman/Multimedios-PMSO)

Page 91 - Gilberto Gil and Caetano Veloso, 1968

Page 110 - Art and commerce. Caetano Veloso exhibits a toy stove in 1968.
Foto: J. Ferreira da Silva/Abril Imagens


Page 126 - Caetano Veloso performs on the popular variety show Discoteca do Chacrinha, 1968 (Agência JB, Jornal do Brasil)


Page 132 - Gilberto Gil performs at the International Song Festival, 1968 (Cristiano Mascaro/Abril Imagens)


Page 139 - Gal Costa at TV Record Festival, 1968 (Paulo Salomão/Abril Imagens)


Page 192 - Caetano Veloso (left) and Gilberto Gil perform in New York City during their Tropicália Duo tour, 1994. (Claudia Thompson)


1968 - Caetano Veloso



1968 - Caetano Veloso (Courtesy of Universal Records)

1968 - Tropicália, ou Panis et Circensis (Courtesy of Universal Records)

1968 - Tom Zé (Courtesy of Tom Zé)

1969 - Jorge Ben (Courtesy of Universal Records)






DUNN, Christopher. Brutalidade jardim - A Tropicália e o surgimento da contracultura brasileira. Tradução: Cristina Yamagami. Edição. Editora UNESP, São Paulo, 2009. 280 p.



No final da década de 1960, artistas brasileiros consolidaram um movimento cultural divisor de águas conhecido como Tropicália. Atualmente, a música inspirada por esse movimento tem recebido considerável atenção tanto no Brasil quanto no exterior.

Poucos novos ouvintes, contudo, conhecem a relação entre essa música e as circunstâncias por trás de sua criação, a fase mais violenta e repressiva do regime militar que governou o Brasil de 1964 a 1985. Com importantes manifestações no teatro, cinema, artes visuais, literatura e especialmente na música popular, a Tropicália articulou com dinamismo os conflitos e aspirações de uma geração de jovens brasileiros urbanos.

Concentrando-se em um grupo de músicos da Bahia, o brasilianista norte-americano Christopher Dunn revela como artistas brasileiros incluindo Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa e Tom Zé criaram esse movimento em sintonia com a vanguarda musical e poética de São Paulo, a cidade mais moderna e industrializada do Brasil.

O autor mostra como os tropicalistas se apropriaram seletivamente das práticas culturais do Brasil e do exterior e as parodiaram para expor a fissura entre a imagem idealizada do Brasil como um tranquilo "jardim" tropical e a brutalidade vivenciada diariamente por seus cidadãos.

Prefácio assinado pelo diretor do Teatro Oficina Zé Celso.





GELÉIA GERAL

Letra: Torquato Neto
Música: Gilberto Gil

Um poeta desfolha a bandeira
E a manhã tropical se inicia
Resplandente, cadente, fagueira
Num calor girassol com alegria
Na geléia geral brasileira
Que o Jornal do Brasil anuncia

Ê, bumba-yê-yê-boi
Ano que vem, mês que foi
Ê, bumba-yê-yê-yê
É a mesma dança, meu boi

A alegria é a prova dos nove
E a tristeza é teu porto seguro
Minha terra é onde o Sol é mais limpo
E Mangueira é onde o samba é mais puro
Tumbadora na selva-selvagem
Pindorama, país do futuro

Ê, bumba-yê-yê-boi
Ano que vem, mês que foi
Ê, bumba-yê-yê-yê
É a mesma dança, meu boi

É a mesma dança na sala
No Canecão, na TV
E quem não dança não fala
Assiste a tudo e se cala
Não vê no meio da sala
As relíquias do Brasil:
Doce mulata malvada
Um LP de Sinatra
Maracujá, mês de abril
Santo barroco baiano
Superpoder de paisano
Formiplac e céu de anil
Três destaques da Portela
Carne-seca na janela
Alguém que chora por mim
Um carnaval de verdade
Hospitaleira amizade
Brutalidade jardim

Ê, bumba-yê-yê-boi
Ano que vem, mês que foi
Ê, bumba-yê-yê-yê
É a mesma dança, meu boi

Plurialva, contente e brejeira
Miss linda Brasil diz "bom dia"
E outra moça também, Carolina
Da janela examina a folia
Salve o lindo pendão dos seus olhos
E a saúde que o olhar irradia

Ê, bumba-yê-yê-boi
Ano que vem, mês que foi
Ê, bumba-yê-yê-yê
É a mesma dança, meu boi

Um poeta desfolha a bandeira
E eu me sinto melhor colorido
Pego um jato, viajo, arrebento
Com o roteiro do sexto sentido
Voz do morro, pilão de concreto
Tropicália, bananas ao vento

Ê, bumba-yê-yê-boi
Ano que vem, mês que foi
Ê, bumba-yê-yê-yê
É a mesma dança, meu boi




Brutalidade jardim
A Tropicália e o surgimento da contracultura brasileira
Christopher Dunn
São Paulo: UNESP, 2009.

Tradução de Cristina Yamagami.

por Leon Kaminski 
[Mestrando em História pela Universidade Federal de Ouro Preto]


Publicado em 2001, nos Estados Unidos, Brutalidade jardim: a Tropicália e o surgimento da contracultura brasileira é fruto da descoberta da música tropicalista pelos norte-americanos na década de 1990. Partindo do seu encantamento pelas canções e da perspectiva dos estudos culturais, o brasilianista Christopher Dunn escreveu uma história da Tropicália a partir de um recorte temporal amplo, mesmo admitindo que o movimento tropicalista foi atuante somente entre os anos de 1967 e 1969. A cronologia proposta por Dunn para tratar da Tropicália tem início na Semana de Arte Moderna de 1922 e alonga-se até o ano 2000.

O título do livro destaca a ligação do movimento tropicalista com o modernismo; a expressão “brutalidade jardim” foi retirada de um romance de Oswald de Andrade, “padrinho literário e espiritual da Tropicália”, e utilizada na letra de Torquato Neto para a música “Geleia geral”. O autor utiliza a expressão para se referir, também, à realidade brasileira após o golpe militar, que exploraría a imagem do paraíso tropical – e as premissas ideológicas embutidos em seu uso – e a violência imposta pela ditadura. Jardim e brutalidade coexistem, então, em uma aproximação contraditória.

O movimento tropicalista ficou famoso por suas polêmicas, por sua presença nos festivais de canção, pelas vaias e por seus happenings. A maior controvérsia, talvez, girou em torno do uso da guitarra elétrica na música popular pelo grupo baiano e da reação da cultura engajada de esquerda, que criticava a Tropicália por se posicionar contra a cultura popular nacional. Com o intuito de reconstituir o contexto cultural da década de 1960, Christopher Dunn amplia seu recorte, estendendo-o até os anos 1920. Partindo das análises de Alfredo Bosi em relação ao modernismo, o autor traça duas importantes vertentes antagônicas no pensamento brasileiro oriundas da Semana de 1922 e que estariam envolvidas diretamente nas polêmicas em torno da música
popular na segunda metade dos anos 1960. Nelas, Dunn se fixa nos três primeiros capítulos do livro, realizando sua análise sobre a evolução histórica da Tropicália. A dicotomia presente entre as duas orientações é trabalhada a partir da tensão entre o local e o cosmopolita no interior do pensamento brasileiro.

O primeiro capítulo explora principalmente o modernismo no Brasil, que se dividiria em duas vertentes principais. A primeira, “primitivista”, teria como referência a figura de Mário de Andrade e conferia ênfase à busca das manifestações populares da cultura, principalmente a rural, mais pura, pois a urbana era percebida como contaminada pelas modas internacionais. Segundo a perspectiva de Mario de Andrade, seria necessário valer-se dos elementos da cultura popular para criar uma música nacional distinta; para efetivação de tal projeto, a definição do que era e do que não era autenticamente brasileiro fazia-se mister, já que, para o escritor, a música estrangeira ou “universal” era “antinacional”. A outra vertente, a “futurista”, valorizaria a experimentação formal e tenderia a celebrar a tecnologia e o urbano; sua principal referencia era Oswald de Andrade e seus manifestos, o da “Poesia Pau-Brasil” e o
“Antropófago”. Este segundo defendia a devoração do elemento estrangeiro a fim de criar-se algo novo, autêntico, não simplesmente o acolhimento passivo, como um bom selvagem, da cultura metropolitana. Já o “Manifesto da Poesia Pau-Brasil” clamava por uma “poesia de exportação”, ao mesmo tempo enraizada nas culturas populares locais e engajada nas tendências internacionais modernas, de forma que o Brasil passaria também a exportar e não somente consumir cultura. Para Dunn, essa “poesia de exportação” revelar-se-ia nas figuras de Carmen Miranda, da bossa-nova, dos poetas concretistas e, mais recentemente, da Tropicália. Em relação ao modernismo, o autor ressalta rapidamente, fora dessas duas vertentes, o lançamento, progressista para a
época, de Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, e a difusão da ideia de “democracia racial” que se tornaria corrente mais tarde.

Do choque entre essas duas vertentes do pensamento cultural nasceria a famosa rivalidade entre os nacionalistas e os tropicalistas. Apesar desta contenda já ter sido amplamente explorada pela historiografia nacional, Christopher Dunn, ao situar o início de sua narrativa na década de 1920, deixa mais explícitas as raízes do conflito e amplia seu foco para outras questões que são exploradas mais à frente, como a temática racial. E se lembrarmos que o livro inicialmente foi escrito para o público norte-americano, essa abordagem adotada pelo autor adquire maior relevo.

No segundo capítulo, o autor aborda o contexto cultural da década de 1960 e o surgimento do momento tropicalista. Os desdobramentos do pensamento modernista “primitivista” teriam continuidade e esta vertente se tornaria hegemônica no interior da esquerda, nesse período, pautándose na defesa de uma estética nacional-popular centrada na figura do povo enquanto conteúdo artístico e revolucionário. Dunn explora, como exemplos, a experiência dos Centros Populares de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE), antes do golpe de 1964, e as bases da resistência cultural ao regime militar presentes nas peças de Augusto Boal e na música de protesto. O autor buscou evidenciar que a Tropicália surgiu na esteira de um processo de modernização do país, demonstrando que a base de formação do grupo baiano deu-se como fruto, de certa forma, da experiência arrojada da Universidade da Bahia sob a direção do reitor Edgard Santos, que visaria uma “desprovincialização cultural” do estado e investiria fortemente na área das ciências humanas e nas artes, promovendo a “avant-garde na Bahia”. Ainda nesse capítulo, é abordada a tese, proposta e defendida por Caetano Veloso, da retomada da “linha evolutiva da música popular brasileira”. Segundo o compositor, a música brasileira experimentara uma crescente evolução que teria sido interrompida, após a bossa-nova, pela estética nacional-popular que, debido aos seus purismos, não permitiria a continuidade dessa evolução, estando a MPB estagnada na segunda metade da década de 1960. Desta forma, a Tropicália visaria a retomada dessa “linha evolutiva” por meio da experimentação e da modernização da música brasileira.

No terceiro capítulo, denominado “Momento Tropicalista”, o autor ressalta que a Tropicália não se restringiu somente à música, seu foco principal, mas estimulou uma convergência de manifestações em diversas áreas artísticas, que possuíam afinidades estéticas e valorizavam a experimentação e que vinham se formando autonomamente até este momento de convergência, como o teatro Oficina, de José Celso Martinez Correia, e a montagem de “O Rei da Vela” (peça de Oswald de Andrade) e “Roda Viva” (de Chico Buarque); o cinema da Glauber Rocha, em “Terra em Transe” e “Câncer”; e nas artes plásticas, com as obras de Rubens Gerchman e Hélio Oiticica. Ao enfatizar esse movimento, o autor vai ao encontro das análises mais contemporâneas sobre a Tropicália; entretanto, ele restringe seu foco especificamente à música, privilegiando as figuras de Gilberto Gil, de Caetano Veloso, e, em menor grau, de Tom Zé. No mesmo capítulo, Dunn retoma o debate inaugurado por Roberto Schwarz sobre o caráter alegórico da arte tropicalista, que a avaliava de forma negativa, considerando-a como uma expressão artística da modernização conservadora do regime militar, pois, por ela, os arcaísmos e anacronismos eram apreendidos pela “luz branca do ultramoderno” e pelo uso da alegoria, sem avançar para uma resolução dialética dessas contradições históricas. Abstendo-se de criticar diretamente essa perspectiva, Dunn demonstra que apesar da alegoria estar presente em músicas emblemáticas, ela não era predominante nas composições tropicalistas. Haveria também a presença do pastiche que, diferentemente da alegoria – que pressupõe a crítica –, é uma colagem que permanece neutra.

Assim, nem todas as canções que possuíam justaposições de elementos arcaicos
e modernos tinham a intenção de denunciar a realidade brasileira; muitas vezes
elas simplesmente expressariam estratagemas estéticos que afirmavam essa
coexistência.

No capítulo quarto, o autor explora a radicalização da Tropicália que resultou na prisão e no exílio de Gilberto Gil e de Caetano Veloso. A “cruzada tropicalista” – que no primeiro momento seria caracterizada pela exploração de uma estética kitsch, valorizando o cafona e o “mau gosto” com o intuito de chocar e de satirizar os valores sociais e políticos retrógrados, assim como o “bom gosto” e a seriedade da MPB – teria incorporado, aos poucos, elementos da contracultura internacional que a levaria a uma crescente radicalização. As apresentações musicais dos tropicalistas, inicialmente mais contidas e ainda pautadas pela busca de reconhecimento, a exemplo das que integraram o Festival da Record de 1967, que levaram Gil e Caetano ao estrelato, se tornariam estrondosos happenings como a apresentação de “É Proibido Proibir” no Festival Internacional da Canção de 1968. Para o autor, nos últimos momentos do movimento, a arte tropicalista, inspirando-se nos movimentos internacionais da contracultura, buscava a afirmação da marginalidade e da negritude – como se podia perceber pela cada vez mais explícita influência de Jimi Hendrix e pelas vestimentas utilizadas por Gilberto Gil.

No quinto capítulo do livro, “Tropicália, contracultura e vínculos afrodiaspóricos”, é abordado um dos principais temas motivadores da pesquisa do autor sobre a Tropicália: a questão racial. Para Dunn, a grande importancia do movimento deriva do fato de ele abordar temáticas afro-brasileiras em suas músicas e de apoiar grupos que valorizavam a negritude. Essa temática, raramente abordada nos estudos brasileiros sobre o tropicalismo ou a contracultura, compõe as preocupações que permeiam o campo de conhecimento em que o autor está inserido, no caso, os Cultural Studies norteamericanos.

Em sua leitura, Dunn ressalta a contracultura como um ponto chave para a valorização da cultura e da identidade negra no país. Caetano e Gil, exilados em Londres, de 1969 até 1972, teriam entrado em contato com a música afro-caribenha, especialmente o reggae, com o rock and roll e com a cena contracultural da swinging London, movimentos que influenciariam de forma significativa a música de Gil. Na Bahia, o contato entre as práticas e os discursos da contracultura dos jovens da classe média com a juventude negra da classe baixa colaboraria para o surgimento e revitalização de grupos de música afro e para o crescimento do carnaval de Salvador. Nos grandes centros urbanos, da exploração comercial de ícones da música negra norte-americana surgiria, como o autor denominou, as “contraculturas afrobrasileiras”, como o movimento cultural Black Soul, inspiradas diretamente  os movimentos de consciência negra dos Estados Unidos, apropriando-se do seu estilo visual e musical. Nesse sentido, a juventude afro-brasileira teria passado a acolher produtos e ícones estrangeiros para contestar a inclinação nacionalista da brasilidade que, por meio da ideologia da “democracia racial”, tendia a minimizar a discriminação e a desigualdade racial e a exaltar a mestiçagem. Desta forma, em sintonia com os movimentos culturais afro-diaspóricos e da contracultura, teriam surgido diversos trabalhos dos remanescentes do tropicalismo que valorizavam a cultura negra, como, por exemplo, o álbum “Doces Bárbaros”, que reunia Gil, Caetano, Gal Costa e Maria Bethânia, e o disco “Refavela”, de Gilberto Gil.

O sexto e último capítulo é dedicado à herança tropicalista e sua redescoberta nos Estados Unidos. Dentre seus legados, o autor ressalta a contribuição para uma significativa dissolução das hierarquias culturais no Brasil, por meio da aproximação da cultura de massa e da arte erudita no interior de uma produção cultural híbrida. Christopher Dunn mostra também a recepção da música tropicalista pelos norte-americanos na década de 1990 e como essa “redescoberta” serviu de inspiração para vários artistas. Um fruto importante dessa nova onda tropicalista seria o “resgate” de Tom Zé, não somente de sua obra, mas do próprio artista, que, por sua persistência no experimentalismo musical, teria ficado, por muitos anos, relegado ao esquecimento, à margem da indústria da MPB, como uma espécie de “lado B” da Tropicália.

A grande contribuição do livro é lançar um novo olhar – um olhar que parte de um novo ponto de observação – sobre o movimento tropicalista.

Para o músico David Byrne, conforme texto apresentado na contracapa do livro, essa obra pode ser vista como “uma janela que se abre para uma versão alternativa do próprio passado norte-americano”; fica claro, portanto, que o livro foi pensado a partir de preocupações diferentes das do público brasileiro.

Para este, a obra apresenta um lado da história do tropicalismo que não costuma ser lembrado: a valorização e a construção da identidade afro-brasileira na segunda metade do século XX.







Edição 380 | 14 Novembro 2011

Fazer música: uma prática de cidadania

Graziela Wolfart

Na visão do professor norte-americano Christopher Dunn, a canção brasileira é uma boa indicação da diversidade do povo brasileiro
Estudioso da música e da cultura brasileira, o professor Christopher Dunn percebe que “além de tratar de temas políticos e sociais que têm a ver com a temática da cidadania, a própria prática de fazer música, muitas vezes, sobretudo no Brasil contemporâneo, é uma prática de cidadania”. Na entrevista que concedeu por telefone para a IHU On-Line, ele afirma que “há uma tradição muito forte na música popular brasileira de se apropriar de estilos e gêneros do exterior e fazer com eles música nova. Podemos remeter isso à tradição antropofágica do Brasil, de deglutir o que vem de fora e fazer algo novo”. E completa: “o Brasil é um país completamente integrado na economia mundial e está muito ligado à internet, sobretudo a classe média. Então não há dúvidas de que tais tendências culturais globalizadas irão exercer uma influência muito forte sobre a cultura brasileira”.
Christopher Dunn é professor de literatura e estudos culturais brasileiros na Tulane University, de Nova Orleans, Estados Unidos. É autor do livro Brutality Garden: Tropicália and the emergence of a Brazilian Counterculture (University of North Carolina Press, 2001) e coorganizador de Brazilian popular music and globalization (Routledge, 2001). Atualmente trabalha com a questão da contracultura dos anos 1970.

Confira a entrevista.


IHU On-Line – O que a canção brasileira revela sobre as características de seu povo?
Christopher Dunn – Há tantas dimensões na música popular brasileira que é difícil resumir, mas acho que podemos dizer que a canção brasileira é uma boa indicação da diversidade do povo brasileiro, porque é muito variada. Eu acabo de terminar um livro sobre a música popular e a cidadania, que tem vinte artigos, tanto de pesquisadores brasileiros como de americanos, e nossa pesquisa revelou que há uma tradição na canção moderna brasileira de refletir profundamente sobre a condição de cidadania no Brasil. Além de canções de amor, que são muitas, há canções satíricas, humorísticas, e há também uma tradição de fazer música sobre a sociedade e sobre a situação social do brasileiro. Mas isso não é somente no Brasil, então se torna difícil distinguir precisamente uma característica brasileira. É melhor ver simplesmente as tendências.

IHU On-Line – Em que sentido a canção é uma forma de exercer a cidadania?
Christopher Dunn – Além de tratar de temas políticos e sociais que têm a ver com a temática da cidadania, a própria prática de fazer música, muitas vezes, sobretudo no Brasil contemporâneo, é uma prática de cidadania. Como, por exemplo, o movimento hip hop, em São Paulo, que é um verdadeiro movimento social, que envolve a comunidade, que busca trabalhar com jovens que estão em risco. O mesmo se pode dizer sobre o grupo Afro Reggae , do Rio de Janeiro, que é um grupo cultural, mas também tem um papel social muito importante na comunidade das favelas do Rio de Janeiro. A mesma coisa pode ser dita sobre o movimento dos blocos afro, que desde os anos 1970, na Bahia, em Salvador, funcionam como uma espécie de movimento social muito voltado para questões de cidadania e acabam envolvendo pessoas que não têm nada a ver com música em si, mas que têm mais a ver com outras atividades, sempre voltadas para questões de consciência social, política e racial. Com isso procuramos ver a música popular como uma espécie de exercício de cidadania, tanto do ponto de vista de canções e músicas que tematizam essa questão como de movimentos ou grupos culturais que funcionam com essa prática.

IHU On-Line – O que caracteriza a canção durante o movimento Tropicália?
Christopher Dunn – Com a Tropicália  há uma tentativa de redimensionar a canção brasileira de forma totalmente híbrida e, por que não, pós-moderna, no sentido de que, em vez de desenvolver um estilo próprio, como a Bossa Nova , produziu um som muito baseado na estética do pastiche. A estética do pastiche é justamente citar, sem necessariamente parodiar, uma variedade muito grande de sons. Existem aí citações de rock, de músicas latino-hispano-americana, de música nordestina, a bossa nova, o samba. A característica fundamental da Tropicália é justamente essa flexibilidade, esse trânsito entre vários sons e vários estilos, sem propor um estilo próprio e novo. É justamente essa multiplicidade da Tropicália à justa posição de sons, estilos e referências que é a característica principal do movimento.

IHU On-Line – Que relação pode ser estabelecida entre a música popular brasileira e a globalização?
Christopher Dunn – Há uma tradição muito forte na música popular brasileira de se apropriar de estilos e gêneros do exterior e fazer com eles música nova. Podemos remeter isso à tradição antropofágica do Brasil, de deglutir o que vem de fora e fazer algo novo. Vemos isso desde o samba, no início dos anos 1920, apesar de ser totalmente enraizado nas tradições brasileiras, até a bossa nova, que foi uma maneira de trabalhar com alguns aspectos do jazz norte-americano. A Tropicália é um exemplo disso. Podemos ver também o rock brasileiro dos anos 1980, o movimento Mangue Beat, que está totalmente inserido dentro de um contexto internacional de música popular, e o movimento rap. O Brasil é um país completamente integrado na economia mundial e está muito ligado à internet, sobretudo a classe média. Então, não há dúvidas de que tais tendências culturais globalizadas irão exercer uma influência muito forte sobre a cultura brasileira.

IHU On-Line – Qual a principal contribuição da canção para as transformações culturais de um país? Qual a especificidade brasileira nesse caso?
Christopher Dunn – Não sei se a canção é o motor transformador de uma cultura, ou se é um reflexo de transformações culturais que estão em curso, ou ainda se se trata de uma relação dialética, com movimentos pelos dois lados. Os tropicalistas encararam as transformações do Brasil que decorreram da ditadura e da implantação e instauração de um regime de modelo de modernização autoritária e que produziu ou exacerbou algumas contradições dentro da sociedade. Mas, ao captar, também conseguiram de alguma forma transformar a cultura brasileira e propor novos modelos de entender a sociedade. O mesmo ocorre em relação a esses grupos mais contemporâneos que, respondendo ao recuo do Estado em relação à participação social, as comunidades muito marginalizadas, praticamente excluídas do Estado, começaram a trabalhar a cultura como uma forma de exercer a cidadania. Essa foi uma resposta às condições materiais, sociais da sociedade durante a época posterior à ditadura, depois dos anos 1980. Esses grupos acabaram tendo uma influência muito grande sobre a forma como os brasileiros entendem sua condição social. É um reflexo que acaba também captando um processo, dessa forma transformando a sociedade ou, pelo menos, transformando nossa percepção da sociedade.

IHU On-Line – Como a música brasileira é vista no exterior?
Christopher Dunn – Com muito interesse, muita fascinação, muita alegria. A música brasileira sempre terá um público no exterior muito grande. Não posso falar muito de outros países. Sei que em quase todos os outros países há pessoas que apreciam a música brasileira, sobretudo na Europa e nos Estados Unidos. Aqui nos Estados Unidos, já há uma tradição bem estabelecida, desde a bossa nova. Depois tem o caso de Milton Nascimento , que foi muito apreciado. Já no final dos anos 1980, o surgimento de um fenômeno muito curioso aqui no EUA, chamado de World Music, mostra um interesse em música popular de outros países. E o Brasil estava envolvido com isso. Quase todas as cidades grandes aqui no país têm suas próprias escolas de samba, todas as cidades grandes ou mesmo as medianas, têm escolas de capoeira, em que se canta música popular brasileira. Meu filho, que tem 6 anos, está fazendo capoeira com um grupo do Paraná e estão aprendendo a cantar as cantigas de capoeira. É mais uma forma de a música popular brasileira circular nos Estados Unidos.




DIARIO DO NORDESTE
10/06/2017 
Um olhar gringo sobre a Tropicália
O pesquisador norte-americano Christopher Dunn faz uma análise crítica do movimiento

por Iracema Sales - Repórter 



Capa do disco ou "Tropicália Panis et Circencis", ícone do movimento que transformou não apenas a música, mas a cultura brasileira em diferentes aspectos 




O dramaturgo José Celso Martinez Corrêa, criador do Teatro Oficina e que dirigiu a peça "O rei da vela" - espetáculo considerado importante por ter inspirado tropicalistas.




Glauber Rocha, cujo "Terra em transe" também inspirou transformações.

Um olhar gringo sobre a Tropicália. Grosso modo, assim pode ser definido o estudo do pesquisador norte-americano Christopher Dunn, condensado no livro "Brutalidade Jardim - A Tropicália e o surgimento da contracultura brasileira" (tradução de Cristina Yamagami).

A capa da edição brasileira traduz visualmente o título da obra, ao fazer referência ao psicodelismo, aparecendo em primeiro plano uma tarja simulando alto relevo, em papel-lixa, de cor sombria, retratando plasticamente o cenário brasileiro da época, no qual a juventude dividia-se entre a luta armada e o desbunde.
A frase-título "Brutalidade jardim", foi tirada da música "Geleia Geral" - hino-manifesto do movimento, de autoria do poeta Torquato Neto. Nos versos, o compositor desfaz a ideia de "paraíso tropical", denunciando, de maneira subliminar, a repressão que passou a fazer parte do dia a dia da população, naquele então Brasil embalado pelo ufanismo dos anos 1950, e a ideologia do nacional-popular defendida pelos jovens utópicos do Centro Popular de Cultura (CPC).
Entidade de uma organização cultural de esquerda, de abrangência nacional, foi fundada em 1962, tendo à frente a União Nacional dos Estudantes (Une), durante o governo João Goulart (1918-1976), cujo mandato vigorou de setembro de 1961 a março de 1964.
"O golpe levou a um regime militar autoritário e pró-capitalista, marcando o fim do experimento democrático do Brasil entre 1945 e 1964", revela o autor, completando que "as energias utópicas do experimento do CPC foram transferidas para novas arenas". Uma delas, a Tropicália, que prometia ter a senha de entrada em um mundo sem patrulhas ideológicas, capaz de unir luta e prazer, numa verdadeira catarse.
Dividida em seis capítulos, a obra mostra que a coragem foi o principal elemento a impulsionar a criação de um dos mais significativos coletivos artísticos do País, forma de organização ressurgida no século XXI. A interação de linguagens propostas pelo movimento, que pregava "um som universal", cujo nome é tirado da canção "Tropicália", de Caetano Veloso, buscou inspiração em uma instalação do artista visual carioca, Hélio Oiticica.
Esse espírito de abertura e liberdade marcou o movimento, que, apesar de reciclar valores da cultura nacional, não era purista. Ou seja, estava aberto a manifestações consideradas alienígenas, como a contracultura, acolhendo desde o som refinado da bossa nova aos acordes dissonantes dos Mutante e às guitarras que chegavam tocadas pelas mãos de garotos que diziam "amar os Beatles e os Rolling Stones", representando a Jovem Guarda.
E foi em meio a essa "geleia geral" que vigorou, por menos de três anos, a Tropicália, esbanjando coragem e ousadia. Carnavalizou a cultura brasileira e mostrou possibilidades de misturar a "linha evolutiva da música popular brasileira" com outros sons, a exemplo do reggae, rock, soul e outros hibridismos.
Conforme o pesquisador, mais tarde, Caetano diria que a Tropicália promovia um "nacionalismo agressivo" em oposição ao "nacionalismo defensivo" da esquerda anti-imperialista. O movimento também serviu para mostrar a face contestadora do Nordeste, jogando por terra o estereótipo de lugar do atraso. Foi da região que saíram os idealizadores da Tropicália.
"Na década de 1930, vários escritores modernistas com interesses regionalistas e social-realistas representaram o Nordeste rural como um local de nostalgia por um mundo patrimonial perdido para a modernização e urbanização, ou como um local de abjeta pobreza e injustiça levando à revolta social".
Depois, o CPC veio ajudar a desconstruir essa faceta, cabendo então aos tropicalistas completarem o novo retrato da região, que é também moderna e urbana.
Meio século
O equilíbrio crítico marca o estudo, que passa em revista o que o autor denomina "movimento de renovação estética da música e da cultura brasileiras liderado por Caetano Veloso e Gilberto Gil" que, neste ano, completa meio século de criação. O distanciamento histórico-temporal possibilita a percepção do legado do movimento até hoje para a cultura brasileira.
"O projeto tropicalista manifestou-se durante um período de intensos conflitos políticos e culturais no Brasil, criticando simultaneamente o governo militar e o projeto nacional-popular da esquerda brasileira", analisa Dunn, que aponta duas obras importantes que encorajaram os tropicalistas a lançar os cânones do movimento: "Terra em transe", de Glauber Rocha, e a produção de "O rei da vela", no teatro Oficina, dirigido por José Celso Martinez Corrêa.
As obras denunciam os paradoxos do movimento, uma vez que Glauber Rocha se identificava com o trabalho realizado pelo CPC; enquanto José Celso era menos ortodoxo quanto ao posicionamento político da esquerda da época.


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